Carta escrita no século 19 por John Nelson Darby ao Editor de um de seus
livros
"Meu caro amigo e irmão em Jesus Cristo,
"Deu-me muita satisfação ver sua tradução de meu livro. Tive o grato prazer
de lê-la, ou melhor dizendo, de ter alguém que a lesse para mim, naqueles
momentos dos quais o Senhor nos diz, como disse aos apóstolos, "Vinde vós,
aqui à parte, a um lugar deserto, e repousai um pouco" (Mc. 6:31). Mas não
posso deixar de dizer-lhe, meu caro amigo, que o prazer que a aparência do seu
trabalho me trouxe foi, em certa medida, abatido pela opinião demasiado
favorável que você expressou a meu respeito no prefácio. Antes que tivesse lido
uma palavra sequer de sua tradução, presenteei a um mui querido e sincero amigo
com um exemplar, e ele mencionou o que você escreveu em seu prefácio louvando
minha piedade. O texto produziu em meu amigo o mesmo efeito que viria a produzir
em mim, mais tarde, quando o pude ler. Espero, entretanto, que você não leve a
mal o que vou dizer a respeito do assunto, o que é fruto de uma experiência
razoavelmente longa.
"O orgulho é o maior de todos os males que nos afligem, e de todos os nossos
inimigos, não apenas é o mais difícil de morrer, como também o que tem a morte
mais lenta; mesmo os filhos deste mundo são capazes de discernir isto. Madame De
Stael disse, em seu leito de morte, Sabe qual é a última coisa que morre em
uma pessoa? É o seu amor-próprio." Deus abomina o orgulho mais do que
qualquer coisa, pois o orgulho dá ao homem o lugar que pertence a Deus que está
acima de tudo. O orgulho interrompe a comunhão com Deus, e atrai Sua repreensão
pois "Deus resiste aos soberbos" (I Pd. 5:5). Ele irá destruir o nome do
soberbo, pois nos é dito que "a altivez do homem será humilhada, e a altivez
dos varões se abaterá, e só o Senhor será exaltado naquele dia" (Is. 2:17).
Como você mesmo irá sentir, meu caro amigo, estou certo de que não há maior mal
que uma pessoa possa fazer a outra do que louvá-la e alimentar seu orgulho.
"O homem que lisonjeia a seu próximo, arma uma rede aos seus passos" (Pv.
29:5) e "a boca lisonjeira obra a ruína" (Pv. 26:28). Você pode estar
certo, além do mais, que nossa vista é muito curta para sermos capazes de julgar
o grau de piedade de nosso irmão; não somos capazes de julgar corretamente sem a
balança do santuário, e ela está nas mãos daqu*Éle que sonda o coração. Não
julgue nada antes do tempo, até que o Senhor venha, e torne manifesto os
conselhos do coração, e renda a cada um o devido louvor. Até então, não
julguemos nossos irmãos, seja para bem seja para mal, senão com a moderação que
convém, e lembremo-nos que o melhor e mais certo juízo é aquele que temos de nós
mesmos quando consideramos aos outros melhores do que nós.
"Se eu fosse lhe perguntar como sabe que eu sou "um dos mais avançados na
carreira cristã, e um eminente servo de Deus", sem dúvida você iria ficar
sem saber o que responder. Talvez você viesse a mencionar minhas obras
publicadas; mas será que você não sabe, querido amigo e irmão -- você que pode
pregar um sermão edificante tanto quanto eu -- que os olhos vêem mais do que os
pés alcançam? E que, infelizmente, nem sempre somos o que são os nossos sermões?
"Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder
seja de Deus, e não de nós" (II Co. 4:7). Não lhe direi a opinião que tenho
de mim mesmo, pois se o fizer, é provável que enquanto o faça procure minha
própria glória, e, enquanto estiver buscando minha própria glória, possa parecer
humilde, o que não sou. Prefiro dizer-lhe o que o nosso Mestre pensa de mim --
Ele que sonda o coração e fala a verdade, que é "o Amém e a fiel
Testemunha", e que tem falado frequentemente no mais íntimo do meu ser, pelo
que agradeço a Ele. Creia-me, Ele nunca me disse que sou um "eminente Cristão
e avançado nos caminhos da piedade." Ao contrário, Ele me diz bem claramente
que se eu procurasse o meu próprio lugar, iria encontrá-lo como sendo o do maior
dos pecadores, pelo menos dentre os que são santificados. E devo dar mais
crédito ao julgamento que Ele faz de mim, meu caro amigo, do que aquilo que você
pensa a meu respeito.
"O mais eminente Cristão é um daqueles de quem nunca se ouviu falar, algum
pobre trabalhador ou servo, para quem Cristo é tudo, e que faz tudo para ser
visto por Ele, e somente por Ele. O primeiro deve ser o último. Fiquemos
convencidos, meu caro amigo, de louvar somente o Senhor. Só Ele é digno de ser
louvado, reverenciado, e adorado. A Sua bondade nunca é demasiadamente
celebrada. O cântico dos abençoados (Apocalipse 5) não louva a ninguém senão
`Aquele que os redimiu com o Seu sangue. Não há no cântico uma única palavra de
louvor a qualquer dos redimidos -- nenhuma palavra que diga que são eminentes,
ou que não são eminentes -- todas as distinções estão perdidas no título comum,
"os redimidos", que expressa a alegria e glória de todo o Corpo.
Empenhemo-nos em trazer nossos corações em uníssono com aquele cântico, ao qual
todos esperamos que nossas débeis vozes venham se unir. Esta será a razão da
nossa alegria, mesmo enquanto estivermos aqui, e contribuirá para a glória de
Deus, a qual é lesada pelo louvor que os Cristãos frequentemente prestam uns aos
outros. Não podemos ter duas bocas -- uma para louvar a Deus e outra para louvar
o homem. Possamos, então, conhecer o que os serafins fazem (Isaías 6:2,3),
quando com duas asas cobrem suas faces, como um sinal de sua confusão diante da
sagrada presença do Senhor; com outras duas asas cobrem seus pés, como se
tentassem esconder de si mesmos os seus próprios passos; e com as duas asas
restantes voam para executar a vontade do Senhor, enquanto proclamam, "Santo,
santo, santo é o Senhor dos exércitos: toda a terra está cheia da Sua
glória".
"Perdoe-me por estas poucas linhas de exortação Cristã, as quais
tenho certeza, irão, cedo ou tarde, se tornar úteis para você, passando a fazer
parte da sua própria experiência. Lembre-se de mim em suas orações, enquanto
rogo para que a bênção do Senhor possa pousar sobre você e seu trabalho. Se você
porventura vier a imprimir uma outra edição -- como espero que aconteça -- por
gentileza, exclua as duas frases para as quais chamei sua atenção; e me chame
simplesmente "um irmão e ministro no Senhor." Isto já é honra bastante, e
não é preciso mais." J. N. Darby